sábado, 18 de janeiro de 2014

NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO

NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO

 
 
 

A Narrativa e os Personagens

 
No princípio, o texto imita os autores amazonenses do auge da época da borracha, que eram imitadores de Euclides da Cunha.[i]
 
            Para o critério de um resultado considerável de meu pensar reflexivo, sobre o romance O Amante das Amazonas, de Rogel Samuel, o préstimo da Entrevista do autor à jornalista Tânia Gabrielli-Pohlmann aparecerá, aqui, como registro às minhas induções analítico-fenomenológicas sobre sua diferenciada criatividade ficcional. Por este auxílio do próprio escritor, entendo os desempenhos dos dois narradores deste relato ficcional, sobre o esplendor e decadência do Império Amazônico, como autênticas rubricas pós-modernas/pós-modernistas de Segunda Geração. Verifico, outrossim, por meio de uma reflexão teórico-crítica abrangente, que o Ribamar-Narrador poderá ser avaliado como alter ego do escritor comprometido com suas leituras diárias, e, ao mesmo tempo, propenso a impregnar-se criativamente das mesmas, transformando-as em fontes de produção literária ficcional.
Diz Rogel que, no princípio, o seu texto buscou imitar os autores amazonenses do auge da época da borracha, que eram também imitadores de Euclides da Cunha. O fato é que o escritor de Os Sertões, aquele que tanto se impressionou com os problemas do sertanejo, principalmente os habitantes do Alto Sertão (os realmente “fortes”), em confronto com os “enfraquecidos” sertanejos da caatinga (os próximos, do “brejo”, onde, à época, desnutridos, a seca os exterminava com maior facilidade), ao visitar a região amazonense, e ao escrever sobre a mesma, impressionou-se teluricamente (atentar para a etimologia da palavra), legando aos historiadores (e apreciadores de impecáveis estilos literários) sensibilíssimas páginas de puro encantamento, mas não logrou traduzir em palavras plurissignificativas ─ criativas ─ aquilo que entendo por verdadeira arte literária (fosse no âmbito da miséria humana, que grassava no Amazonas do princípio do século XX, ou da beleza estonteante de um lugar reconhecidamente de pura maravilha e incríveis singularidades). Euclides da Cunha, diferente de sua atuação como criador ímpar em Os Sertões, em seus textos sobre o Amazonas, ao ocupar-se das virtudes e/ou os problemas daquela região, não alcançou (pelo meu ponto de vista), no âmbito da criação literária, suas peculiaridades riquíssimas, atuando, por outro lado, como repórter impressionista, a observar tensamente, mas por uma ótica sintagmática, as inúmeras mazelas que assolavam aquele “paraíso” já maculado por exigências capitalistas (o que poderia ser um dado singular no espaço da criatividade paradigmática), excluindo assim a possibilidade de recriar o ambiente da Floresta artisticamente e de obter o ensejo de transformar aqueles textos (reconhecidamente de impecáveis qualidades discursivas, no entanto, lineares) em algo “incômodo” (incomum criação literária) para os leitores de sua época e para os leitores do futuro.
Euclides da Cunha colocou o Amazonas à margem da história pois se encontrava submisso à idéia de que a região estava separada dos ideais políticos do Novo Mundo Americano, desde a conquista colonial dos espanhóis ao norte da América do Sul (século XVI) e, posteriormente, século XVII, de 1580 a 1640, quando os reis espanhóis se apropriaram do trono português e da Colônia do Brasil. A verdade é que o anterior pensamento euclidiano permaneceu incólume até aos anos finais do século XX, porque a região amazônica resistiu aos liames da colonização espanhola nos países fronteiriços, à época colonial, e, posteriormente, à colonização portuguesa da Terceira Dinastia Orleans e Bragança, após à regeneração. Até meados do século XIX não se tornaram notórios, naquelas paragens do Estado do Amazonas e Acre, mais próximas da fronteira com Peru e Bolívia, os conhecidos, historicamente falando, assentamentos comerciais dos colonizadores. Esta constatação evidencia a sobredita “marginalidade” constatada por Euclides da Cunha nos anos iniciais do século XX. O que Euclides percebeu e comprovou, em seu escrito documental sobre a região amazônica, próxima às fronteiras de domínio espanhol, é que a “marginalidade” do território, apesar dos aventureiros que ali se estabeleceram desde o início da colonização, principalmente os não-portugueses ou pouquíssimos portugueses, se encontrava politicamente aquém do desenvolvimento colonial das outras regiões do Brasil.
Por este ângulo, percebo o Manixi rogeliano, originário do final do século XIX, um Manixi governado por um ditador sui generis de origem francesa. Enquanto os espanhóis, primeiramente, e portugueses, posteriormente, colocaram a região distanciada dos valores aproximados das antigas regras coloniais, transformando-a numa espécie de local periférico, um lugar desconhecido, onde poucos aventureiros ousavam explorar, lá pelos idos do século XVIII e início do XIX, aventureiros de outras nacionalidades por ali aportaram, submetendo alguma etnias indígenas e os caboclos ao seus domínios. Na verdade, os colonizadores (espanhóis e portugueses) possuíam extensões de terras brasileiras menos problemáticas para a colonização e, por isto, não persistiram na busca exploratória, devido às dificuldades de locomoção, às doenças tropicais, aos ataques dos indígenas, aos ataques dos animais ferozes da Floresta, e muitos outros empecilhos. Tais embaraços não perturbavam os aventureiros de outros reinos europeus, em seus anseios de domínio e enriquecimento de livre comércio. Sobre esse itinerário dificultoso, o narrador-personagem de Rogel Samuel, o Ribamar de Sousa, iniciando a sua viagem ficcional em 1897, oferece-me informações estimáveis:
 
Porém embarcado chegaria em Manaus sem tropeços depois de 6 dias de viagem a 8 milhas por hora. E 2 dias mais tarde passava pela Boca do Purus, 5 dias após entrava na Foz do Juruá. Não navegávamos dia e noite? Na Foz do Juruá o Rio Solimões mede 12 km de largura e pássaros de vôo curto (o jacamim, o mutum, o cojubim) não conseguem atravessar, morrendo cansados afogados no fundo de ondas pinceladas de amarelo da travessia. Em 8 dias de navegação pelo Juruá chegávamos no Rio Tarauacá e atracávamos em São Felipe, de 45 casas, vila bonita, e arrumada. 9 dias depois entrávamos no Rio Jordão, de onde não prosseguiu o Barão, que não tinha calado, a gente seguindo desse modo de canoa pelo Igarapé Bom Jardim, subindo pois e encontrando nosso termo e destino, a ponta do nosso nó, o término, o marco extremo de nós mesmos, o mais longínquo e interno lugar do orbe terrestre ─ atingíamos finalmente o Igarapé do Inferno, limite do fim do mundo onde se encontrava, e envolto no peso de sua surpresa e fama, o lendário, o mítico, o infinito Seringal Manixi ─ 40 dias depois de minha partida de Belém, 3 meses e 5 dias desde a minha partida de Patos.[ii]
 
Mas não disse que vinha à procura de Tio Genaro e meu irmão Antônio, aviados no Manixi. Não. Pois eles tinham sido trabalhadores seringueiros do Rio Jantiatuba, no Seringal Pixuna, a 1.270 milhas da cidade de Manaus, onde anos depois naufragaria o Alfredo. Eles freqüentaram o Rio Eiru, numa volta quase em sacado, e dali partiram em chata, barco e igarité até ao Rio Gregório, onde trabalharam para os franceses, e de lá partiram para o Rio Um, para o Paraná da Arrependida, aviados livres que eram, subindo o Tarauacá até o ponto onde dizem foi morto o filho de Euclides da Cunha, que delegado era, numa sublevação de seringueiros. Depois viajaram. E foram para o Riozinho do Leonel, seguiram para o Tejo, pelo Breu, pelo belo Igarapé Corumbam – o magnífico! –, pelo Hudson, pelo Paraná Pixuna, o Moa, o Juruá-mirim até o Paraná Ouro Preto onde, pelo Paraná das Minas entraram pelo Amônea, chegando ao Paraná dos Numas, perto do Paraná São João e de um furo sem nome que vai dar num lugar desconhecido.[iii]
 
Os aventureiros europeus, como os franceses e alemães, à época, por não se acharem os “donos” da Colônia, penetraram naquele templo de pureza mítica, conhecido como Floresta Amazônica, com a intenção evidente de apropriação do local. O fato era que os colonizadores espanhóis e/ou portugueses, cada um em seu tempo histórico, estavam mais preocupados com a costa brasileira, alvo de vários ataques de navios piratas (ingleses, holandeses, franceses), do que propriamente, por motivos óbvios, com a região amazônica da fronteira latino-americana: julgavam que terras tão inóspitas não iriam merecer a atenção dos aventureiros de outros reinos de Além-Mar. Por este aspecto, retomando as minhas inferências sobre o Manixi ficcional rogeliano, a partir do reconhecimento histórico de uma região sem igual, além de repensar a presença do personagem francês Pierre Bataillon, como chefe importante da região, medito sobre a presença missionária dos padres católicos alemães, na figura do personagem Frei Lothar, objetivando catequizar os indígenas e mestiços, mas sofrendo os males da expatriação, afundando-se no desmazelo corporal e no vício da bebida, e, conseqüentemente, na desilusão espiritual.
O valor histórico dos textos de Euclides é inestimável. Os textos, sobre a realidade amazonense do início do século XX, são bem elaborados (não há como contestar a capacidade discursiva do escritor), há ali a marca dos que sabem escrever e transmitir pensamentos e conhecimentos em forma de narrativa, mas, reafirmo, não há o “desconforto” verticalizante do texto artístico (a possibilidade de o leitor interagir com os cogitos superiores do escritor). Por exemplo, a Ilha de Marapatá, para Euclides, é o “mais original dos lazaretos ─ um lazareto de almas! Ali, dizem, o recém-vindo deixa a consciência...”[iv]. Esta horizontal informação de Euclides não atinge o cogito reflexivo do leitor, em outras palavras, não promove a “eternização” literária do lugar, mesmo que demonstre textualmente que a Ilha de Marapatá é o espaço da angustiante solidão. No entanto, o Pós-Moderno/Modernista de Primeira Geração Mário de Andrade recebeu a informação, com certeza por via euclidiana, avaliou-a, e soube transformá-la em ficção-arte. Com sua capacidade de interagir criativamente com as palavras, Mário de Andrade obsequiou os leitores de seu presente histórico (e os do futuro) com uma lendária Ilha de Marapatá, onde seu personagem Macunaíma havia deixado a consciência ao sair para o espaço universal.


[i] Trecho retirado da Entrevista de Rogel Samuel à jornalista Tânia Gabrielli-Pohlmann.
[ii] Idem: 11 - 12.
[iii] Idem: 12.
[iv] CUNHA, Euclides. “Terra sem História: Amazônia”. À Margem da História. São Paulo: Martin Claret, 2006: 28.

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